O que dizem os críticos...
A FESTA INQUIETA
Todas as festas são acompanhadas de rituais próprios, os quais no caso daquelas que têm reminiscências religiosas, podem remontar a períodos antes da história (da Pré-história e mesmo da Proto-história). Na relação entre o passado e o presente, estes rituais e festas vão-se transformando, prosseguindo uma tradição que com o tempo confunde o religioso com o profano e que entra no domínio do etnográfico.
A investigação deste universo do cruzamento dos tempos antigos com o presente tem sido uma constante no trabalho tanto de Rui Moreira como de Pedro A. H. Paixão. Foram várias as ocasiões em que elaboraram projectos juntos (1994 foi o ano da sua primeira colaboração numa residência em Vila Velha de Ródão), e a presente exposição na Fundação Carmona e Costa, com curadoria de Sara Antónia Matos, é exactamente o resultado de mais uma dessas parcerias.
A festa que exploraram foi a dos Caretos de Podence, uma vila em Trás-os-Montes. Decorrendo na época do Carnaval, esta festa, ou ritual, associa práticas mágicas (relacionadas com os cultos agrários da fertilidade) aos rituais iniciáticos.
Os dois artistas participaram nestas festas, envergaram as vestes dos caretos, entraram nos seus jogos e rituais. A sua experiência é traduzida mais tarde para trabalhos que se encontram na exposição. Esta tradução não é directa, mas o resultado dessa vivência com a mundividência de cada um. Uma prática mediada pelo tempo, pela memória e pelo intervalo que vai da experiência directa do lugar, da festa, ao isolamento do estúdio do artista. Apesar de ser uma colaboração, ou seria melhor dizer uma festa conjunta, os trabalhos são distintos, sendo que as afinidades existentes se situam ao nível do processo mais do que na obra final (a repetição e a tradução seriam dois processos comuns).
Rui Moreira apresenta um conjunto de desenhos que parte dos caretos, mas que prossegue na sua investigação até levá-lo a trabalhos que apontam para novas direcções, como as paisagens montanhosas que o conduziram ao seu próximo destino: a Índia.
Pedro A. H. Paixão apresenta três desenhos de uma intensidade performática surpreendente e um filme que é encarado como um trabalho filosófico feito em imagens cinematográficas. À narração do tratado de Aristóteles, Da Memória e Reminiscência, é contraposto um ensaio visual sobre a paisagem que pretende ser uma tradução/interpretação visual daquele texto.
Filipa Oliveira
in L+arte, pp. 89, Junho 2008
SILÊNCIO A SILÊNCIO
por José Luís Porfírio
TUDO começa, para mim, numa vertigem: umas asas que mais tarde soube serem de um “Anjo” navegam no escuro sobre uma superfície singular, uma espécie de buraco negro espiralóide que acrescenta à visão de cima para baixo que temos das asas e do seu movimento um outro movimento, ilusório desta vez, que me transporta a uma antiga sensação, a de cair para cima, só possível de ter numa noite sem lua e sem a poluição iluminante actual que cada vez mais pretende esconder-nos a noite. É com esta ilusão de voo, ou de queda, que se inicia uma circulação completa, sem regressos obrigatórios, entre silêncios, mas com alguns discursos, num ritmo que nos obriga a ver, a parar, a rever, a escutar, a ler e a ver de novo, mais intensamente se possível. A seguir ao “Anjo”, temos “Adolescentes”, um vídeo com palavras ditas e lidas também, a espaços. Depois, solenes, as grandes pinturas negras de ritmos contraditórios, os “Silêncios 1 e 2”, enquanto o “Silêncio 3” se decompõe num jogo de tondos espalhados pelas paredes e chão de outro espaço. Depois, “Laminagem”, o vídeo mais longo, enquanto se escuta, sobre sons de tempestade, um texto que fala do apagar da tradição com a continuidade das gerações e do esquecimento e, a seguir, se lê, sobre o ecrã, um texto adaptado do poema homónimo que fecha esse livro grave de Joaquim Manuel Magalhães que é “Alta Noite em Alta Fraga”. Esse texto deixou-me um sabor “a sarro e arrabalde”, enquanto no ecrã imaginamos, mais que vemos, o vestígio que sobra de uma paisagem apagada. Finalmente, o “Tambor”, outro vídeo, funciona como um anúncio da exposição, do seu fim ou do seu princípio, e sobretudo como aviso para a mensagem terrível de um adolescente que se suicidou e que mal se lê num relevo, a branco sobre branco, na parede. Não fora o “Anjo” e a sua dança e a sala dos tondos que dançam, também, tudo seria grave, pesado, sufocante, de uma densidade quase insuportável, feita de negrume e desespero. Assim, baralhando o espaço e os sentidos, a exposição sabe-se e sente-se como um jogo jogado e partilhado, um lugar brincado onde (vamos lá saber porquê?) existe possibilidade para alguma esperança; talvez porque o jogo e a vertigem que com ele vem interrompam um discurso para afinal, o completarem, acenando para um espaço onde a esperança possa morar. Fica patente o entendimento entre Moirika Reker e Gilberto Reis, os artistas, um par que que não pretende autonomias autorais, a Fundação e o comissário, João Miguel Fernandes Jorge, que transformaram para melhor o espaço existente de modo a possibilitar uma circulação sem recuos ou idas e voltas obrigatórias, impondo assim o ritmo circular que tão favorável se torna ao conjunto de um percurso excelentemente construído, onde tudo faz sentido e, por isso mesmo, se constrói ao arrepio do gosto dominante.”
In Expresso, suplemento Actual, 21.03.2009, pp. 27
Desenhos,
construções e
outros acidentes
CARLOS NOGUEIRA NA FUNDAÇÃO CARMONA E COSTA
CRISTINA CAMPOS
Se Carlos Nogueira dispensa apresentações, a exposição “Desenhos construções e outros acidentes”, patente na fundação carmona e costa até ao final do mês com curadoria de Sara Antónia Matos, deve ser entendida como um momento ímpar no percurso do artista funcionando, em certa medida, como uma espécie de mostra antológica ao integrar não só trabalhos recentes como obras de décadas anteriores, em jeito de apontamentos (em que a sua marca autoral se apresenta por vezes menos evidente) que o artista repescou e trouxe a público. Nesse sentido, citando-o e revelando muito sobre o seu processo criativo, a exposição – que não está organizada cronologicamente nem invoca qualquer narrativa subjacente – foi “iniciada há quase 30 anos”. O artista admite juntar quase compulsivamente objectos que, a determinado momento, se revelam absolutamente indispensáveis e passam a integrar obras que são produzidas de forma muito lenta (a nível da sua concepção e concretização).
As suas esculturas, médium preferencial no contexto de diversos suportes que trabalha, enfatizam a volumetria e resultam numa equilibrada simbiose entre a rigidez, a frieza e a banalidade aparente de muitos dos materiais utilizados, retirados de um quotidiano comum (madeira, vidro ou ferro, por exemplo) e a delicadeza e envolvência suscitadas pela depuração das formas e pela capacidade que lhes é inerente de invocarem o sagrado, entendido enquanto inexplicável, metafísico (não mítico) e primordial. As obras de Carlos Nogueira agregam ainda a curiosa e reveladora capacidade de sugerirem ausências, sopros que deixam vestígios da sua passagem e que somos impelidos a seguir mesmo desconhecendo que direcção tomar. Por outro lado, muitas delas revelam segredos inerentes à sua produção através de frequentes decisões de exibição que resultam do acaso incorporado enquanto instrumento de trabalho. Apesar de a maioria das peças em exposição se apresentarem em suspensão, o que inclusivamente enfatiza o seu carácter invocativo (sublinhado por títulos poéticos) nalguns casos a decisão de serem expostas numa posição alternativa resultou precisamente de incidentes incorporados enquanto método de trabalho, seguindo o princípio de “introduzir os erros no sistema”.
Para Carlos Nogueira o espaço expositivo é absolutamente decisivo enquanto ponto de partida para a concepção de cada mostra, funciona como espaço de experimentação por excelência empenhado na incansável busca de soluções que garantam que o espectador vivência as obras de forma idealizada pelo artista potenciando diálogos e pontes de contacto e aproximação. A garantia de uma comunicação eficiente com o público pauta todo o processo de selecção de obras, bem como a própria montagem da exposição: work in progress que, em parceria do artista com a curadora, se prolonga até ao momento da inauguração. A selecção de trabalhos e o design expositivo vão-se então desenhando não só racionalmente através do pré-estabelecido como recorrendo a um processo de depuração e maleabilidade que deixa entrar o acaso, o imprevisto, as evidências repentinas que se afiguram incontornáveis. Cedências, assumidas inclusivamente no título (“acidentes”) que decorrem da segurança de um artista que vem consolidando o seu percurso desde finais da década de 70.
Percurso esse que, nos anos 90, esbarra com uma alteração de fundo apontada consensualmente que se prende com o facto de a natureza (relacionada essencialmente com o céu e com o mar) deixar de ocupar o posto de arquétipo preferencial – através de invocações simultaneamente figuradas e imaginadas – passando a arquitectura a ocupar esse posto. Também no plano formal se reflecte esta transformação, nomeadamente com um recurso mais frequente à utilização da cor. A arquitectura é entendida como o veículo para revelar o lugar das coisas e, nesta lógica, a noção de casa, definida por Le Corbusier enquanto “guarda-jóias da vida”, revela-se fundamental, tal como a luz que é, inclusivamente, referenciada nas fichas técnicas de algumas obras. Invocando a visualidade e o tacto, as obras de Carlos Nogueira revelam ainda reminiscência performativas, pedindo para serem experienciadas, de forma corporal e evocativa. Irresistíveis sugestões.
In Artes & Leilões, nº 14, Janeiro 2009
PEDRO A. H. PAIXÃO
Desenho, a Transparência dos Signos
ARTE
Estes estudos sobre a teoria do desenho, embora rigorosos, não são apenas um mero ensaio técnico, mas uma incursão ilustrada sobre o «desenhável» (do desenho da infância à «ciência» de desenhar), num percurso de transparência e magia que conduz o leitor a Aristóteles e a Dante («Vita Nuova»), assim como à arte renascentista, para afirmar o desenho como «a anunciação de uma terra ou matéria que eternamente, em nós, nos espera»
In Expresso/ Actual, 13.06.2008, pp. 44
DISCIPLINA SEM NOME
"Três livros dedicados a uma "disciplina sem nome".
Pedro A. H. Paixão é o responsável por uma nova colecção de ensaios, editada pela Assírio & Alvim, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da fundação carmona e costa, que coloca o desenho enquanto paradigma de pensamento, motor de reflexões variadas sobre a nossa relação com o mundo. Cruzam-se perspectivas filosóficas, históricas, metodológicas, que atribuem ao desenho um valor e uma configuração primordial na história do pensamento. Um paradigma a considerar. Ficamos a aguardar os próximos volumes."
in L+arte, pp. 89, Junho 2008
DENTRO E FORA DE CASA
"Na fundação carmona e costa, "Moradas" reúne os trabalhos de quatro artistas em torno do pensamento sobre o acto de habitar. Há uma história que é contada em jeito de introdução. A artista Ana Vieira ofereceu à filha da escultora Catarina Câmara Pereira uma casa de bonecas. A partir daqui, com a participação também de Fernanda Fragateiro e Fernando Brízio, constitui-se um grupo suficientemente heterogéneo para produzir uma colectiva com interesse, sempre tendo como base o desenho como é hábito nas exposições desta instituição.
As peças de Catarina Câmara Pereira reproduzem com varetas de metal o desenho da casa de bonecas, preenchendo-o pontualmente com tecido de nylon esticado. Este tecido, que serve também para fabricar os "collants" femininos, cria associações entre o desenho da casa e o corpo, associação que reforça a imagem metafórica mais comum da habitação como prolongamento do eu. Alguns desenhos estão suspensos graças a balões negros, o que permite uma leitura mais poética desta peça, que não ocupa um espaço fechado dentro das salas de exposição, já que esses balões interferem também com a obra de uma outra artista, Fernanda Fragateiro.
Esta desenvolveu para aqui um tipo de peças da sua série mais recente, feitas por pequenas cavilhas formando uma espécie de biombos. O biombo, espécie de parede móvel que cria divisões efémeras no espaço, permite uma leitura menos centrada no conceito de casa como projecção da intimidade, e mais focada no pensamento sobre o espaço: neste caso, o espaço da morada, mas também o espaço expositivo, na descendência directa de obras como as de Robert Morris, por exemplo. Esta peça é aquela que prefere com mais evidência uma abordagem mais generalizada do espaço.
Fernando Brízio, de quem se conhece a prática continuada do design, apresenta um trabalho surpreendente pela inventividade que demonstra e pela capacidade de conjugar o desenho com a reflexão sobre o espaço fechado da casa: uma porta corrediça com bastões de grafite cravados vai desenhando, à medida que abre e fecha, um desenho contínuo sobre uma parede falsa. Há também um dispositivo feito com carimbos que, cada vez que se encerra, imprime uma palavra na superfície da parede onde bate. Ou seja, Brízio, servindo-se de objectos e estruturas comuns no dia a dia de uma casa, convoca o tempo para realizar a obra, um elemento que geralmente está ausente de modo explícito das disciplinas artísticas tradicionais.
Finalmente, Ana Vieira também convoca o tempo, mas sob a forma de memória. A sua peça reproduz tridimensionalmente a representação espelhada da casa onde viveu a infância. Há depois objectos pendurados na parede da sala, que se assemelham aos móveis que a artista conheceu, mas esvaziados da sua materialidade física, como sacos – ou balões – que perderam a forma. Este vazio encontra evidentemente a sua correspondência na peça de Câmara Pereira, onde o hélio dos balões permitia que a casa flutuasse. Esta última peça, de Ana Vieira, é também a mais melancólica, aquela que permite maiores associações (parte da casa representada é em espelho, o que abre a imagem para espaços que não são unicamente os das peças), e a que possui, por isso, maior riqueza de significado.
Luísa Soares de Oliveira in Ípsilon/Público, 14.03.2008